A Folha de São Paulo e até mesmo o Estadão são capazes, via de regra, de articular posições conservadoras com tranqüilidade e ponderação. Mas quando o tema é a ditadura militar, ah, mes amis, neste caso costumam sair-lhes as garras raivosas. A propósito da recente indenização concedida à família de Carlos Lamarca, assassinado pelo exército brasileiro em 17 de setembro de 1971 – sim, assassinado, não “morto em combate”, o Estadão publicou um editorial em que abusa de termos como “facínora” e “terrorista” para caracterizar Lamarca, concluindo com a pérola de que vivemos um despencar generalizado de valores éticos. Talvez a ética da qual o Estadão sinta saudades seja a ética da tortura a adversários políticos, realizada com a cumplicidade dos grandes veículos de mídia que, salvo poucas exceções, docilmente reproduziram as versões e o vocabulário do aparato repressivo. A Folha de São Paulo tem todo o direito de se opor à indenização, mas não tem o direito de mentir, afirmando em editorial que Lamarca foi “morto em combate”, versão amplamente desacreditada pela historiografia do período. A própria Folha reconhece, em reportagem publicada no mesmo dia, que a indenização é simplesmente uma conseqüência da decisão da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça que, em 1996, estabeleceu que Lamarca já estava sob o cerco de agentes do Estado, sem condição de reagir.
Lamarca desertou do exército cinco anos depois que o exército havia desertado da democracia. Junto a outros setores da esquerda que haviam rompido com o PCB, participou da opção pela luta armada que incluiu, sim, assaltos a bancos e uma expropriação de armas do exército, realizada no dia de sua deserção, 24 de janeiro de 1969. Mas não há sentido aceitável da palavra “terrorista” que se aplique a Lamarca. Cuidado aí com a banalização dos termos, senhores editorialistas. Sim, a desastrada teoria foquista, inspirada em Régis Debray e Che Guevara, propunha que a revolução brasileira seria possível a partir das ações de um grupo vanguardista armado e bem treinado, visão adotada por setores da esquerda ante o recrudescimento da repressão, o imobilismo do PCB e a completa desarticulação da oposição democrática. Salvo pouquíssimos casos, seus autores pagaram amargamente pela avaliação equivocada. Mas o termo “terrorista” simplesmente não se aplica.
A indenização à família de Lamarca foi feita nos termos da lei e é independente de qualquer avaliação que se faça sobre a deserção ou a luta armada. Durante anos, o exército propagou a versão de que Lamarca teria sido morto em troca de tiros com agentes do exército. O diálogo que ele teria tido com seus perseguidores, segundo a já desacreditada versão oficial, é digna de algum sargento que assistiu demasiados filmes de bang-bang: ‘Quem é você?’ – ’Carlos Lamarca.’ – ‘Sabe o que aconteceu com a Iara?’ – ‘Ela se suicidou em Salvador.’ – ‘Onde está sua mulher e seus filhos?’ – ‘Estão em Cuba.’ – ‘Você sabe que é um traidor da Pátria?’. Lamarca teria morrido sem responder a esta última pergunta.
Note-se aí, claro, o clichê cinematógrafico do herói que morre sem responder a última pergunta; a inverossimilhança da declaração atribuída a Lamarca, reconhecendo o “suícidio” de sua companheira Iara e endossando a versão do exército (já desacreditada e revista por historiadores; e, por último, a extrema improbabilidade de que os perseguidores do temido atirador Lamarca se limitassem a “bater um papinho” com um capturado ainda em condições de reagir. Sabem do que falo aqueles que conhecem a sucessão de mentiras produzidas para justificar mortes sob tortura durante o regime militar, desmascaradas em definitivo com o caso Herzog.
Merecem meus parabéns os que deram boas respostas às reações da mídia acerca da indenização à família de Lamarca: o Prof. Luiz Felipe de Alencastro, o jornalista Mário Magalhães (que, sem alarde, vem fazendo um brilhante trabalho como ombudsman da Folha, tendo desconstruído neste domingo o editorial publicado pelo jornal na sexta), Alan Feuerwerker e o blogueiro Jayme Serva. Foram as vozes mais sensatas a se opor à histeria da mídia que, em sua forma mais abjeta - a da revista Veja , claro - incluiu até mesmo a criação do obsceno termo "bolsa-terrorismo".
Lamarca desertou do exército cinco anos depois que o exército havia desertado da democracia. Junto a outros setores da esquerda que haviam rompido com o PCB, participou da opção pela luta armada que incluiu, sim, assaltos a bancos e uma expropriação de armas do exército, realizada no dia de sua deserção, 24 de janeiro de 1969. Mas não há sentido aceitável da palavra “terrorista” que se aplique a Lamarca. Cuidado aí com a banalização dos termos, senhores editorialistas. Sim, a desastrada teoria foquista, inspirada em Régis Debray e Che Guevara, propunha que a revolução brasileira seria possível a partir das ações de um grupo vanguardista armado e bem treinado, visão adotada por setores da esquerda ante o recrudescimento da repressão, o imobilismo do PCB e a completa desarticulação da oposição democrática. Salvo pouquíssimos casos, seus autores pagaram amargamente pela avaliação equivocada. Mas o termo “terrorista” simplesmente não se aplica.
A indenização à família de Lamarca foi feita nos termos da lei e é independente de qualquer avaliação que se faça sobre a deserção ou a luta armada. Durante anos, o exército propagou a versão de que Lamarca teria sido morto em troca de tiros com agentes do exército. O diálogo que ele teria tido com seus perseguidores, segundo a já desacreditada versão oficial, é digna de algum sargento que assistiu demasiados filmes de bang-bang: ‘Quem é você?’ – ’Carlos Lamarca.’ – ‘Sabe o que aconteceu com a Iara?’ – ‘Ela se suicidou em Salvador.’ – ‘Onde está sua mulher e seus filhos?’ – ‘Estão em Cuba.’ – ‘Você sabe que é um traidor da Pátria?’. Lamarca teria morrido sem responder a esta última pergunta.
Note-se aí, claro, o clichê cinematógrafico do herói que morre sem responder a última pergunta; a inverossimilhança da declaração atribuída a Lamarca, reconhecendo o “suícidio” de sua companheira Iara e endossando a versão do exército (já desacreditada e revista por historiadores; e, por último, a extrema improbabilidade de que os perseguidores do temido atirador Lamarca se limitassem a “bater um papinho” com um capturado ainda em condições de reagir. Sabem do que falo aqueles que conhecem a sucessão de mentiras produzidas para justificar mortes sob tortura durante o regime militar, desmascaradas em definitivo com o caso Herzog.
Merecem meus parabéns os que deram boas respostas às reações da mídia acerca da indenização à família de Lamarca: o Prof. Luiz Felipe de Alencastro, o jornalista Mário Magalhães (que, sem alarde, vem fazendo um brilhante trabalho como ombudsman da Folha, tendo desconstruído neste domingo o editorial publicado pelo jornal na sexta), Alan Feuerwerker e o blogueiro Jayme Serva. Foram as vozes mais sensatas a se opor à histeria da mídia que, em sua forma mais abjeta - a da revista Veja , claro - incluiu até mesmo a criação do obsceno termo "bolsa-terrorismo".
Fonte: "o biscoito fino e a massa"